Raiai!

Um blog de baianidades soteropolitanas

15 março 2006

O Sexto Sentido

Pablo vê gente morta. Afirma q quando começou a ver e ter contato direto com elas, tinha medo; acendia velas. Revela ainda hoje sentir calafrios e, só, presenças estranhas. Ficar remoendo na cabeça besteiras sempre acontece; se ver espantado consigo no espelho também, é de praxe. As velas se fazem parceiras nas noites de prece. Se apagam na hora q chegam os mortos da noite. De dia é mais fácil e mais claro, sem essas nuances: do morto coberto, das sombras, das ‘luzes queimadas’.

Vir ver quando vinha mais outro no turno dos outros, lhe fez perder mais esse medo e deixar de besteiras. Lhe fez deixar os pesadelos ir para outros monstros: dinheiro, a falta do mesmo e a saúde da velha.

A velha era a mãe, dona Martha, de crenças estranhas. Pensava ou achava q era vidente e sensitiva. Com a idade lhe veio a catarata e a deficiência auditiva, mas sempre sabia e sentia quando seu Pablo, chegado, entrava e fechava a porta.

O Pablo, com um ano no trampo, cansara-se: “chega!”. Chega de ver tanta desgraça, por vil recompensa. Pablo sai de casa tão cedo e tão cedo não volta. Só volta tão tarde q nem dona Martha agüenta. (Por vezes só vê o filhote no fim da semana. Por vezes não vê, pois não enxerga direito, lamenta).

Infeliz no ofício o Pablo se viu mais ainda, quando teve – por pressão – de fazer uns serviços a mando... mutreta de um tal diretor q desviava umas coisas: uns pesos estranhos, nuns sacos escuros, de noite.

Um dia abriu curioso um saco daqueles... assustou-se e viu-se caído numa grande enrascada – “Meu Deus!” – relutou mas calou-se e envolveu-se na imensa roubada – “Fodeu!”.

Revoltado, escreveu uma carta, em tom de mistério, o Pablo. E o mistério quem quis desvendar foi um tal jornalista, de A Tarde. / Jornalista e dono da fonte, foi logo querendo saber algo a mais, e os demais mil “detalhes, rapaz!” do rapaz da Saúde, nascido em Seabra.

“Se abra, meu bom, vai, me conta!”, bem queria contar pelo q (mal) passava. Afetado, porém, relatou no instante somente as mágoas cultivadas... e as longas jornadas, os maus pagamentos, “isso é, quando eles pagavam!”

No Nina, onde trabalhava, manteve segredo o tempo inteiro. Segredo pros q não sabiam ou não se envolviam por medo ou desprezo. Desprezo com a grana tão pouca, a tarefa tão árdua, o tempo e o perigo.

Pensou – e pensou duas vezes! – em contar essa história; seu caso era outro. O Pablo denunciaria por ser, dentre todos, o forçado, o mais fraco – o lado. E do outro lado da linha, o caça-notícias lhe deu garantias: “...¿Fechado?”.

Por fim, sim, fecharam acordo: marcaram o encontro na casa da “vítima”. Mas antes, esclarecimentos, acerca do caso, do acerto, do acordo:

O Pablo achara no chão, na semana dos fatos, um número e um nome. Um número de telefone, com o nome do cara, do tal jornalista. Do tal q sabia tão pouco, mas o suficiente para ter confiança. Do homem q falava tão baixo e no fim dos acertos lhe deu “boa noite”.

Além ‘nome e número’, a marca do A Tarde... metade; o resto cortado: “A Ta”. Cartão branco, sujo de preto e vermelho, caído, mas o Pablo ia usar. Usou, ligou e marcou explicando q era algo muito importante. De gente importante envolvida, de alguma influência e até ‘costas quentes’.

Na calada de uma noite escura (mui bem mais escura q todas as outras) encontrou-se o rapaz com uma cara sombria, de óculos e um guarda-chuva. Mirou uma nuvem no céu, o homem de olhar tenro e dirigiu-se ao Pablo. Senhor circunspecto, gestos comedidos, sereno e a princípio calado. [ ... Numa noite da mesma semana em q se envolvera, o Pablo, no esquema ilegal: no tráfico de corpos, nas negociações: IML x Universidade Federal ].

Retomando: na calada de uma noite escura (com nuvem, sem chuva), os dois se encontraram. Na noite de lua tão branda, e de cheia tão branca, se cumprimentaram, / ao pé da ladeira do Paiva, onde o Pablo P. Paiva vivia com a velha. Mantido o contato, seguiram, não intermitentes, pra casa do mesmo.

Mais cedo, pois não receava a demissão forçosa pós-depoimento, em casa então chegara o Pablo com seu novo amigo, sem fazer barulhos.

A mãe, dona Martha, estranha o entrar sem as vozes q acusa o filho, quando chega e quando diz: “minha mãe, bote aí meu jantar preu num morrer de fome!”. E a Martha, sensitiva, eis q sente uma presença estranha, os passos dobrados. Enfim, diz o Pablo: “cheguei, minha mãe, tô com fome, cansado, quebrado”.

Mais calma, retoma o preparo da janta do filho q faz com prazer. Na sala a conversa começa com o Pablo perguntando o q o homem quer beber.

O senhor diz q ‘nada’ mas mais ‘positivo’ afirma: “adorei, jovem, a sua casa”. Comenta por ser um tanto antiga e por preservar ainda o estilo original, a fachada. Pergunta coisas fora do contexto e do tal pretexto q o levara ali. Natural e espontaneamente, Pablo diz q sente nela uma energia estranha, mas quis dizer ‘ruim’.

A mãe de lá pergunta se o Pablo lhe chamou, lhe falou alguma coisa, “¿o q disse?”. O Pablo diz q ‘não’ e explica ao interlocutor q a mãe, idosa, já mal consegue ouvir. / Às vezes diz q é meio doida, mas preferiu o ‘caduca’, quis ser mais discreto. Discreto também riu o outro, ante isso, com um olhar compreensivo (olhos semi-abertos).

O homem disse não ligar, mas quis saber da Martha, mãe do Pablo Paiva; a Martha, mãe, já quase morta, enfim, o q ela achava da profissão do filho – o filho o informava:

O Pablo contou q a mãe já não entendia nada, ou quase nada “necas!”. Pensava era q o filho ia, todo santo dia, para um centro espírita. Q lá era q trabalhava almas incuidadas, almas não ‘passadas’. “Dizia e me diz ainda q eu sou um em muitos, q o meu dom é nobre”. O dom de ver os mortos “vivos”, de ver além das coisas, “q pra ela é sorte!”

O homem então pergunta sobre o curioso pássaro, lá detrás da planta. O Pablo atesta, é a grande prova de a mãe ser mesmo desequilibrada: “mãe cuida de um corvo preto feito um papagaio, um grande periquito”.

A Martha dessa vez ouviu... pensou ouvir ruídos vindos da TV. Mas a televisão omissa, escura, desligada, não quis nada dizer... O Pablo é q falava muito, bastante sobre isso, um tanto irritadiço:

“O certo é q de morto eu tudo vi já de algum jeito: homem, mulher; jovem, adulto; bonito, feio; magro, seco... De tudo, até bebê e velho, gente sem as pernas, me olhando rindo; de corpo crivado de balas, olho esbugalhado; misturados, juntos; com o maxilar arrancado, da cabeça o tampo, com o miolo à mostra... De início, vomitava e tudo, mas me afiz aos cheiros... quase pego o gosto. Nunca me disseram nada. ¡Nunca me disseram nada!”.

Sobre o filho, sem ser perguntada, dona Martha, lúcida, disse o seguinte: “Você, meu filho, na infância, sempre conversava com os ‘irmãos passados’. Você ajudou tantos deles, mas agora diz q não está lembrado. É pena, filho, isso era bom, pois muitas almas más você já libertou. As boas sempre o adoraram e você sempre teve um grande protetor. Liberta agora o “obsessor” q tá aí do seu lado e vem jantar, meu filho. Diga-lhe q vá em paz, lhe dê um ‘até mais’... o jantar está servido”.

O Pablo ouviu a mãe parado e quando olhou pro lado ainda viu um vulto. O Pablo q lembrou do corpo q transferira junto com aqueles restos... restos cadavéricos, peças de defuntos, roupas e “¡cartões!”, carteiras.

O Pablo q vê gente morta, hoje não transporta mais mortos nas macas. O Pablo q vê gente morta, foi trancar a porta e largou as drogas.


*Baseado em fatos reais.
**Conto de RAIAI! 4

4 comentários:

Anônimo disse...

Espetacular.
Nunca tinha visto um controle de ritmo de escrita tão interessante.

A HISTÓRIA É ARREBATADORA.
PARECE NATURAL.

gilson_ss@gmail.com

VOLTO A COMENTAR, QUANDO TERMINAR DE LER OS OUTROS CONTOS.

Anônimo disse...

Muito bom texto.
Coordenado, engraçado, impecável.
h.h.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
PPP disse...

Rpz e hoje eu achei isso aqui, por acaso, de bobeira. Velhos contos, velhas histórias e ilusões.
Abraço man,

Pablo Paiva